domingo, 27 de setembro de 2015

Memórias e Esquecimentos

Memória e literatura são a mesma coisa e o esquecimento é o rincão mais inacessível de nossa biblioteca, o livro que acreditávamos ter perdido e que um dia aparece coberto de pó, mas com seu poder de fascinação intato. Não há maior horror que o esquecimento porque nesse exercício perdemos tudo o que o tempo nos permite salvar.
Sem memória não há identidade. Nós vivemos na memória. Habitamos nela. Aquilo que a memória ama permanece eterno. Possuir o tempo da memória é a nossa mais bela capacidade, é esse fio de Ariadne que nos salva do labirinto da dor, da incerteza e nos devolve para a alegria de viver. E como diz C. Pavese: “A riqueza da vida está feita de recordações esquecidas”. Este é o nosso verdadeiro ter. Saramago, falando de seu avô, diz: “Meu avô antes de morrer quis despedir-se das árvores, de sua horta e dos lugares que amava onde vivia”.
A memória é a nostalgia feliz. Pela nostalgia, pela saudade reconhecemos coisas preciosas. Por isto é preciso festejar a memória, falar com as lembranças, com a vida das lembranças.
A memória serve para ocultar o tempo passado, esquecer a ferida demasiado viva, estorvando-a com recordações que distorcem a ordem inicial dos acontecimentos. Por isto, muitas vezes é mais traumática a lembrança do que o fato em si.
Há um conto do Antigo Egito no qual dizem que cada ano havia um concurso de inventos e num ano se apresenta um homem com um invento prodigioso, antes de permitir-lhe apresentá-lo ao jurado do concurso o rei pede para vê-lo e ao vê-lo o proíbe. Diz para o homem do concurso: “Teu invento vai ganhar e se ganha acabará com a memória e com a capacidade de recordar”. O invento era um papiro, o primeiro livro.
Talvez esta história nos diga que o efêmero é a memória e o duradouro é o esquecimento.
Recordar é voltar ao coração as lembranças. Do latim: recordare. E falar é voltar a sentir, despertar o que dorme.
E o esquecimento? A perda da lembrança, o extravio das imagens que, do passado temos acumulado. A lembrança é sempre de uma lembrança. Se há algo que o ser humano não suporta são as lacunas da lembrança, do poço sem fundo que supõe a perda do passado. Por outro lado, esquecer é uma função tão importante como recordar.
Portanto, memória e esquecimento têm a mesma origem. E como disse Mario Benedetti: “O passado é sempre uma morada. Não podemos evitar que uma parte de nossa vida permaneça ali, colecionando gozos ou rancores, transmutando os mumificados fatos em delírios, visões ou pesadelos. Essa parte nossa que ali permanece, nos chama tanto, nos faz sinais, nos refresca velhas primícias, e tudo isto porque é a primeira em saber que não nos convém abandoná-la, fazer de conta que nunca existiu. O esquecimento é, antes que nada, aquilo que queremos esquecer”.
Sabemos também que não é possível levar consigo um completo inventário do passado. Não há mala ou diário íntimo com capacidade suficiente. Muitas carências, pesadelos e inibições do adulto costumam ter raízes na infância. Se cortarmos as pontes com a infância é possível que nos condenamos a uma inacabável imaturidade. Em relação à infância, o mais importante é descobri-la, compreendê-la, decifrá-la, detectar onde começou uma esperança, onde foi semeado um desalento.
A memória ou o subconsciente vão acumulando uma antologia de essências atesouradas, das imagens que entre outras coisas são signos de identidade, das palavras que foram revelações, dos gozos e sofrimentos decisivos.
A memória só acaba com a morte, porém, enquanto o tempo vai nos levando pela mão, e às vezes pelos cabelos, pela vida, o futuro vai se reduzindo e nesta redução nos reserva decadências, várias e sucessivas perdas que no entanto o passado, pelo contrário, aumenta de espaço, vai se convertendo em nossa única riqueza inexpugnável. E no dizer do Subcomandante Marcos, “os que amam a vida possuem um cuidado muito grande com a memória”.
O território do esquecimento, tão próximo do sonho e do sono, não é um deserto desabitado, mas um mundo povoado ainda que furtivo que subsiste em nós carregado de elementos vivos, sem que muitas vezes sejamos capazes de percebê-los.
Em contra das leis físicas, nós seres humanos viajamos no tempo através da memória. E nessa condição de tempo vivo faz que todo o vivido permaneça bastante em nós, e seguramente o esquecimento é o sistema de capacidades que nos permite vislumbrar em cada momento só alguns aspectos do passado. Se todo o vivido se mantivesse dentro de nós com a mesma vigência, ficaríamos loucos, e possivelmente muitas formas de loucura se relacionam com a incapacidade de esquecer.
Por que esquece a memória? Não se pode esquecer o que não se recorda, para esquecer é preciso recordar. A memória funciona sempre associada ao afeto e recordamos aquilo que nos afetou. A afetividade positiva potencia a memória, enquanto que a negativa a impede.
“O tempo é a substância de que sou feito”, diz J. L. Borges. O tempo é esse grande escultor que nos alerta a escolher o que perdura e desfazer-nos o que merece em cinza e vento. Somos tempo, e em consequência efêmeros, porém nesta nossa natureza efêmera está a intuição de uma eternidade que não nos corresponde, e acaso o esquecimento nos ajuda a resignar-nos. Por isso que o ser humano inventou a literatura, uma máquina do tempo mais perfeita que a simples memória, que nos permite fixar a recordação e o esquecimento mediante sinais escritos e comunica-los aos demais, estabelecendo uma espécie de simulacro de eternidade, uma eternidade portátil ao alcance da experiência e da emoção de todos.
Pode a literatura retirar a salvo o que está esquecido? Sim. Tanto no escritor como no leitor. O processo de escrever e ler é o mesmo. A literatura é talento mais memória. A literatura no final se torna recriação da realidade.
Não há mais utensilio que a palavra para espantar o esquecimento, para criar a ilusão de que o tempo não desapareceu.
E para terminar, nada mais apropriado que as palavras do escritor espanhol Vila-Matas: “Todos queremos perpetuar nossa memória para que nossas vidas não se percam no vazio ou no silêncio. A tendência do ser humano é salvar sua vida do esquecimento”.

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